O país dos Outros
Leïla Slimani
Temas:
Colonialismo, Independencia Marroquina, Migração, Classe, violência de gênero, racismo e feminismo. Gênero: indefinido
Vale a pena?
Sim, caso tu leias romances do mesmo gênero, ou se as temáticas principais te chamam a atenção.
Me parece que o livro de Slimani não segue uma trama típica, com um personagem principal bem definido que avança através de percausos até o climax. A trama gira sobre uma família franco-marroquina e a vida desta numa fazenda próxima a Méknes, durante o período após a segunda guerra até que Marrocos consegue a independência dos colonialistas franceses.
Mathilde é francesa, culta e um pouco frívola e que por vontade de aventura se casou com Amín. Ela chega ao Marrocos sem saber nada do país e interessada apenas na pele e no desejo que sente por seu esposo.
Amín é um marroquino que lutou na guerra pelos franceses, admira a modernidade do país, mas ao mesmo tempo é humilhado por estes colonos a quem defendeu. Ele recebeu de herança uma terra difícil de arar e pobre, próxima à capital Meknès. Era o sonho do seu pai que a família dele pudesse ter terras férteis e é com a chegada do jovem matrimônio nessa terra sem arar que o livro começa.
Durante a posta em cena conhecemos os conflitos que regirão o livro. De um lado Mathilde que se descobre estrangeira numa terra estranha. Vive sob o domínio de seu esposo, que ela admira por ser trabalhador e honrado, mas que não conhece o significado de diversão.
Além disto ele a oprime e se surpreende das liberdades que ela toma que nunca seriam tomadas por uma marroquina (segundo ele). Mathilde se enfrenta a um mundo que a quer em casa, cuidando dos filhos e que nunca possa realizar nada por ela mesma.
O giro interessante nesta receita é que vemos sua relação sensual com Amín, e como ela se integra à cultura marroquina, nunca se aproximando dos racistas colonos franceses que humilham seu marido e seus filhos mestiços.
Seria fácil construir, a partir da cultura machista marroquina dos anos 50, um livro que defendesse uma suposta modernidade por vía dos franceses, mas Leila Slimani não deixa de mostrar como essa suposta modernidade é violenta e opressora e que não é por aí que as respostas se encontram.
Mathilde se integra ao Marrocos, aprende seu idioma e seus costumes, encontra sua vocação no cuidado médico às mulheres marroquinas, esquecidas por seus esposos e pelos brancos que as desprezam. Mathilde as vezes cai, mas sua ânsia de liberdade abre sulcos naquela terra árida por onde Aicha, sua filha, caminhará.
Amín é um personagem dividido no meio, é claro o seu apego pela terra, por fazer florir seu rincão do mundo e pelo respeito à cultura de que é filho. No entanto se casou com uma francesa, lutou pelos franceses na guerra e é admirador de sua ciência no manejo dos campos, mas os franceses o tratam como “outro Mohamed”, sua pele escura é sinônimo de vadiagem, fatalismo, selvageria. Rápidamente esqueceram os heróis que lutaram ombro com ombro contra o nazismo.
Na figura de Omar, irmão de Amín, podemos entender como o lado marroquino vê Amin, e tampouco é elogioso. Para Omar seu irmão é um vendido que se casou com uma cristã, filha dos colonizadores que roubaram a liberdade do seu país.
O que me tocou neste livro foi essa relação de dois extrangeiros que se encontram e constrõem um outro país. Porque Mathilde não é de todo francesa depois de viver tantos anos no Marrocos, e Amín não é de todo marroquino ao festejar o natal e dormir com a inimiga.
Apesar de que a relação de Amín e Mathilde é intragável nos dias de hoje, me pareceu interessante como Slimani constrói Amin. Ele mesmo está num conflito entre sua cultura marroquina que trata a mulher como um ser menor, privado de qualquer poder, nada mais que um pertence do marido e sua relação e amor por uma mulher que cresceu com acesso à boa educação e num país onde Le deuxième sexe acabava de ser publicado.
O que Leïla Slimani consegue é construir os personagens de maneira autentica, e sem julgá-los em seus erros. São personagens humanos, que nem sempre estão do lado certo, que as vezes navegam e outras são empurrados por este grande mar que é a cultura em que nascemos ou àquelas que emigramos.
Mathilde também é cruzada por estes conflitos, tentando construir sua vida numa solidão sem precedentes, atravessada pela amor pela sua cultura e a terrível experiência de ver estos rindo dela porque “a deixou grávida um árabe”, tratando miseravelmente sua filha na escola francesa e humilhando seu esposo. Duas passagens são muito interessantes sobre o racismo cotidiano que sofre a família:
1- Mathilde está doente e um médico francês vem cuidá-la. Primeiro expulsa a serviçal que cuidou de sua senhora com unguentos tradicionais, e trata a Amin, quem o chamou, como um serviçal. Diz a Mathilde, algo como, “como pudeste acabar num lugar assim?“. Como se estar casada a um marroquino fosse o pior que poderia passar a uma francesa. Isso faz Mathilde “construir um muro de palavras” como ela diz para se proteger dessa gente.
2- Sua filha Aisha, educada num colégio de freiras cristãs e que sofre com o bullying de suas companheiras, tem uma festa de aniversário. Aisha não tem realmente amigas, mas algumas alunas aceitam ir até a fazenda, são trazidas de carro por Amin, e quando é noite elas dizem que querem que o chofer as leve de volta.
Mathilde percebe que elas falam de Amín e vai consertar o dito quando sua filha diz: mãe, porque você não diz ao chofer levar elas de volta?.
É emocionante essa relação da criança que é ofendida à diário na escola e pede à sua mãe que não piore a situação contando a verdade.
É tocante como Amín passa a festa de aniversário fumando em um quarto para aplacar a ira e ao levá-las de volta pensa que “são apenas crianças e não tem culpa”.
3 coisas positivas
- Viva representação da cultura do Marrocos da época, tu te sentes imerso naquela região e naquela época
- Os protagonistas são autênticos e bem construídos
- O social e o pessoal se misturam muito bem, não é um trato sociólogico das sociedades coloniais-patriarcais e também não é um livro de romance aguado
3 coisas negativas
- Acho que faltou um pouco de nó em alguns pontos do livro, há personagens, como uma das vizinhas da fazenda, que aparecem durante umas páginas e não existem mais. São personagens utilizados para criar uma impressão, para uma construção do mundo imaginário, mas não estão envolvidos com cenas do enredo. Por exemplo: Omar desaparece por causa da revolução, no entanto, qual a importância dele durante o livro? Pouca. E por ser tão pequena é difícil sentir algo por essa perda. E é um personagem valioso na geografia emocional do romance, ele é um dos lados da balança (colonialismo-nacionalismo). Se o personagem tivesse sido um pouco mais trabalhado a sua desaparição teria tido maior impacto.
- Certas soluções narrativas parecem fáceis, como se faltasse tempo de maturação para a história. Por exemplo como Mathilde em um momento pega um avião para a França pela morte do seu pai, no entanto, sabemos que é uma família pobre que não tem dinheiro para comprar roupas para os filhos então como a passagem aparece de repente?
- O que me foi mais difícil de tragar foi o uso do narrador onisciente, me fazia sair da narrativa quando descobrimos o que o personagem A pensa e logo na frase seguinte o que o personagem B pensa.