← Back to list

Entre tu e eu, Arafat

| 4 min read

Last updated

Eu estava distribuindo adesivos escrito STOP GENOCIDIO, com um QR Code para assinar a ciber-ação de Amnistia Internacional pedindo l’alto el foc a Gaza. O evento, realizado no Parc Valparadís, foi organizado por um coletivo catalão pacifista, que contou com nossa colaboração. Durante o envento uma árvore de azeitona foi plantada, diferentes organizações leram suas declarações e no final um coral começou a cantar.

Embaixo do sol de maio, vestido com o colete amarelo e o conhecido logo de uma vela acesa enroscada em arame farpado, eu entablava conversa com estranhos e lhes dava o adesivo pedindo sua assinatura.

Vários colaboravam com a organização como sócios, alguém me disse que pensava que eu era francês pelo meu sotaque. Outra disse que estava cansada de não fazer o suficiente e me perguntava como ser ativista.

Entre as entregas, parei para ver o coral cantando uma canção catalana (imagino que era catalana porque não entendia a letra) quando uma senhora se aproxima de mim e diz:

  • Joven, te quiero mostrar una cosa.

Ela me falou em espanhol, apesar de eu ter lido em catalão, num microfone bem alto, em frente a muitas pessoas, uma declaração que haviamos preparado sobre a situação atual na Franja de Gaza. O que fala muito sobre minhas habilidades nesse idioma.

A senhora, bastante lúcida e com certa dureza no porte, com óculos de fino aro dourado, e o conhecido pin amarelo independentista no peito, retirou da sua bolsa de pano um livreto verde, com um leve cheiro à mofo.

Na capa, via-se um Yasser Arafat vestido em traje militar, seu característico sorriso discreto e apenas alguns fios brancos no cabelo. Na foto em preto e branco ele caminhava junto a palestinos, em frente a ruínas, ao lado uma mulher que tinha a keffieh caída sobre sua cabeça lhe olhava com olhos brilhantes de dor e esperança.

Abri o livreto que me oferecia: edifícios arrassados, hospitais destruídos, crianças chorando e escombros em diversos tons de cinza. As legendas falavam sobre o genocidio, a barbárie, os crimes atrozes de Israel, no que ficou conhecido como o massacre de Sabra e Shatila.

  • Son las mismas fotos que vemos hoy. - Me disse a senhora.

Essa frase foi um aguilhão, perfurando meu tórax, dirigindo-se rápidamente ao miocárdio e fazendo brotar ali uma flor que ainda persiste. Me disse que tinha alguns adesivos que guardava em uma bolsinha de papel. Encontrou-os e me mostrou: FDLP, OLP, Solidaritat amb el poble palestí, e uma pomba da paz com o pescoço perfurado por uma estrela de Davi, atrás desta um calendário que datava o ano de 1983.

  • Esa lucha es mia y es tuya, es nuestra, y es del pueblo Palestino.

Meu rosto estava seco, impassível, como a dureza do rosto dela, que não deixava ver o que sua voz, suas mãos, seu ato de guardar este livreto por quarenta anos, dizia.

  • Yo los guardo hace muchos años, pero pronto yo me iré, y quiero que eso quede con alguién que los guarde y los cuide.

Me toca profundamente a memória, a história de tantos rostos anônimos, que desde seus grandes corações se levantam num sábado pela manhã para lutar por pessoas que não conhecem, com um idioma que não falam, e uma distância - em kilometros e realidades - que os separam inequivocadamente.

  • Joven, tu los quiere?

Eu olhava a senhora catalana com admiração. Entre meus dedos eu segurava a história. A esperança nunca realizada, mas nunca morta. Compartilhamos ali nossa humanidade, que é a mesma, ainda que nos dividisse a idade, o idioma, o sexo, a nacionalidade.

  • Claro que sí, lo guardaré con mucho cariño.

Eu lhe agradeci, ela sorriu e foi embora, tendo cumprido com sua parte.